30 de março de 2005

Palavras dos outros

“Fiz anos no mês passado, em Março. Há quem pense que os aniversários são um problema pessoal – não são. É verdade que há aquelas festas de aniversário em que o aniversariante faz o papel de aniversariante, apagando as velas de um bolo que ninguém quer provar. Os bolos de aniversário são um enigma para mim – aquelas coberturas de muitos açúcares são constrangedoras. Tanto como desnecessárias. Eu preferia pão de lá com doce de ovos. E sempre desejei que as velas do meu aniversário despontassem brilhantes e coloridas sobre o prato de arroz doce. Assim, eu comeria o meu bolo de aniversário.(...)

Podem tomar-se decisões corajosas antes do aniversário: passar a comer menos hidratos de carbono, evitar a gordurinha do bife (aquela que dá dignidade ao bife verdadeiro), ler a obra completa de José Saramago ou deixar de fumar. Eu decidi abandonar os meus cigarros.
Doravante, aquele momento em que se acende um cigarro depois do café será consumido com outras preocupações. Tive muitos desses momentos, os meus pulmões ressentem-se disso. A partir de agora serei um ser ainda mais normalizado, pouparei dois euros e meio por dia e deixarei de olhar para aquelas frases (“fumar mata”, “fumar causa impotência”) com o heroísmo de alguém que se sente no fio da navalha e fecha os olhos diante do abismo.

Sim, confesso que me sinto feliz por tomar essa decisão. Deixar de fumar cigarros foi uma das decisões mais importantes do meu aniversário – fumei durante vinte cinco anos, compreendam. (...) Devo ter incomodado (involuntariamente) algumas pessoas com o fumo dos meus cigarros e estive prestes a ser agredido, há dois meses, por um cidadão obstinado e que devia vestir a camisa negra dos fascistas, que quase me arrancou o cigarro dos dedos num restaurante; eu estava numa zona de fumadores; mas o sujeito tinha as suas razões, suava, tremia, ameaçou-me com o fogo os infernos. Heroicamente, provei-lhe que a razão estava do meu lado; eu estava numa zona de fumadores. Mas ele era um fundamentalista (...) eu nunca serei um fundamentalista, espero.
Os moralistas anti fumadores apagam os cigarros das fotografias de André Malraux e de Albert Camus. São ridículos e deviam ser processados. Tentar reescrever a história como se Malraux e Camus não tivessem sido fumadores é ignorar que há páginas de Malraux em que se pressente o fumo inqualificável dos Gauloises. (...)
Deixei de fumar cigarros. Provavelmente serei uma pessoa mais saudável mas continuarei a amar aquele momento em que um cigarro se acende com calma e nos devolve a paz dos grandes momentos. (...)

De vez em quando os amigos perguntarão: “Deixaste de fumar?”. E eu vou responder qualquer coisa como “não fumo há trinta e oito dias”, mas não vou sorrir, triunfante, contente, esperando que me dêem uma palmada no ombro como reconhecimento por uma acção. Simplesmente, tratarei de confirmar: “amanhã completam-se trinta e nove dias sobre o meu aniversário – e sobre a data em que deixei de fumar”. Noutra perspectiva direi que acabei de economizar noventa e sete euros e cinquenta cêntimos. Uma estupidez de dinheiro desperdiçado. Mais trinta dias e já poderei comprar a série completa das obras de violoncelo de Bach (e com apenas mais dois dias, poderei comprar a caixinha com todos os discos de Caetano Veloso em edição brasileira). (...)

Ainda bem que deixei de fumar.”

Retirado da revista ELLE "O adeus de um fumador" por Francisco José Viegas


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